O assassinato de Dom Óscar Arnulfo Romero, arcebispo deSan Salvador, é, sem dúvida, uma data na vida da Igreja latino-americana.
Por isso, convém aprofundar o sentido da sua vida e da sua morte, esclarecendo ao mesmo tempo algumas imprecisões produzidas pela pressa da informação.
Dom Romero foi arcebispo deSan Salvador por três anos. Um mês depois de ter assumido esse cargo, em março de 1977, era assassinado o padre Rutilio Grande, sacerdote jesuíta e grande amigo de Dom Romero. Atiraram nas costas dele e de dois agricultores, enquanto ia celebrar a missa.
Durante a celebração do funeral do padre Rutilio, Dom Romero mostrou o significado da sua morte, expressão de uma vida dedicada aos irmãos, no amor ensinado por Cristo, afirmando: “Esperamos a voz de uma justiça imparcial, porque, na motivação do amor, a justiça não pode ficar ausente, não pode haver verdadeira paz e verdadeiro amor com base na injustiça, na violência, na intriga”. Dom Romero repetiria muitas vezes essa mesma ideia: a paz, a verdadeira paz só pode ser construída sobre a justiça social.
Quatro outros sacerdotes seriam assassinados em El Salvador depois da morte do padre Rutilio. Inúmeros foram os assassinatos cometidos pelas forças repressivas de El Salvador, entre agricultores, operários, pessoas dos vilarejos; oSocorro Jurídico do arcebispado publicava boletins periodicamente, dando números e denunciando a contínua violação dos direitos humanos.
Em Roma, onde recebeu palavras de apoio do Papa João Paulo II – que lhe disse: “Conheço a grave situação do seu país e sei que o seu apostolado é muito difícil” –, Dom Romero afirmava com grande lucidez no dia 30 de janeiro: “O maior perigo diante de tanta violência é que fiquemos insensíveis. Eu tento pensar diante de Deus que um só morto representa uma grave ofensa e que, todas as vezes que um homem ou uma mulher morre, é como matar novamente Jesus Cristo“.
Dom Romero tinha uma consciência clara de que devia reconhecer os estigmas sofredores de Cristo nos rostos dos pobres do seu povo. A sua opção por eles é o ângulo concreto e histórico que nos permite compreender o seu compromisso e a sua mensagem, o seu apelo à paz baseada na justiça, a sua leitura do Evangelho.
Dom Romero pregava todos os domingos, e as suas amplas homilias (de uma a duas horas de duração) eram ouvidas com atenção em todo o país e também muito além. Cada homilia tinha três partes: um comentário sobre os textos da missa do dia, uma reflexão cristã que colocava esses textos no rastro de um tema determinado e, por fim, aplicações pastorais, leitura de cartas, análise da situação vivida pelo povo, denúncia das violações dos direitos dos mais pobres.
No dia 17 de fevereiro daquele ano, ele enviou uma carta ao presidente Carter, denunciando a situação existente em El Salvador e o apoio dos Estados Unidos, exigindo que o governo estadunidense, chamado a fazer essas intervenções, se abstivesse de intervir.
Dom Romero muitas vezes recebeu ameaças de morte. O assassinato dos sacerdotes salvadorenhos já era um aviso. No dia 24 de fevereiro, um mês antes da sua própria morte e depois de ter defendido com parcialidade evangélica os direitos dos pobres, ele dizia: “Espero que esse apelo da Igreja não endureça ainda mais o coração dos oligarcas, mas que, ao contrário, mova-os à conversão. Compartilhamos o que eles são e o que eles têm. Não nos calem, mediante a violência, a nós que tornamos presente essa exigência, não continuem a matar aqueles que estão tentando conseguir uma distribuição mais justa do poder e da riqueza de nosso país”.
A essa clara denúncia, que não escondia aqueles aos quais se dirigia, ele acrescentava com serenidade e força: “Falo em primeira pessoa, porque esta semana recebi um aviso de que estou na lista daqueles que serão eliminados na próxima semana. Mas estou tranquilamente convicto de que nunca se poderá matar a voz da justiça”.
A voz da justiça, não, porque ela continua ressoando em El Salvador. Mas ele, pessoalmente, sim, depois de quatro semanas de ter pronunciado essas palavras. Pode-se dizer, por isso, que Dom Romero arriscava a sua vida todos os domingos; e estava plenamente consciente disso.
Quando lhe disseram que ele tinha que se proteger, ele respondia que não queria ter a proteção que o seu povo não tinha. Ainda no sermão do dia 1º de novembro, ele tinha afirmado com toda a clareza e plena humildade: “Peço as orações de vocês para ser fiel à promessa de não abandonar o meu povo, mas de correr com ele todos os riscos que o meu ministério exige”.
Com efeito, para Dom Romero, isso era cumprir o seu serviço como bispo. O exercício do seu ministério assumido com coragem e santidade provocou a bala assassina – uma única – no momento em que começava o ofertório da sua última e incompleta eucaristia, na segunda-feira, 24 de março.
Ele morreu para dar testemunho do Deus vivo na solidariedade com a vida e com os esforços de organização e de libertação dos pobres e dos oprimidos. Dom Romero não ignorava que havia alguns que não compreendiam as exigências do Deus da Bíblia.
No dia 9 de março, ele dizia: “Esta revelação do Deus vivo, caros irmãos, tem muita atualidade hoje, enquanto estamos tentando apresentar uma religião que muitos criticam como se se afastasse da sua espiritualidade”.
O bispo mártir, homem de oração, não entendia isso dessa forma. Ao contrário, ele considerava que a fé no Deus de Jesus implica o compromisso com o pobre e com tudo o que exigem os seus direitos mais elementares. É por isso que, na sua rejeição humana e cristã da violência, nem tudo era posto no mesmo plano para ele.
Em inúmeras ocasiões, ele afirmou que a principal razão para aquilo que acontecia emEl Salvador estava na secular situação de miséria e de desespero das grandes maiorias, resultado de um sistema opressivo feito em benefício de poucos.
Trata-se da violência e da injustiça institucionalizadas das quais falam Medellín ePuebla. A partir daí, não é possível aceitar tudo, e Dom Romero não o fez, mas importa levar isso em consideração para compreender a exigência e a encarnação do amor e da paz que ele pregava.
A essa situação de violência, soma-se uma repressão cruel. Plenamente consciente de onde vinha a violência, no dia 23 de março, Dom Romero lançou um grito angustiado e exigente: “Em nome de Deus e desse povo sofredor, cujos lamentos sobem ao céu todos os dias, peço-lhes, suplico-lhes, ordeno-lhes: cessem a repressão”.
No dia seguinte, à noite, o seu sangue selou a aliança que ele tinha feito com o seu Deus, com o seu povo e com a sua Igreja.
No domingo, 30 de março, ocorreu o funeral do bispo mártir. O povo pobre de El Salvador, vencendo dificuldades e fadigas, veio de todo o país para assistir ao enterro do “monsenhor”. Muitas pessoas vieram de fora, entre elas mais de 20 bispos de diferentes lugares do mundo.
O cardeal Corripio, do México, esteve presente em representação do papa; o enviado doCelam (o Conselho Episcopal Latino-Americano) teve um contratempo e não pôde estar presente na celebração. A tensão do momento fez com que só um bispo de El Salvador estivesse presente. Fato sem dúvida doloroso, mas que mostra a difícil e conflituosa situação que se vivia lá.
A poucos minutos do início da homilia do cardeal Corripio, explodiu uma bomba, e tiros foram disparados. Foi um pânico para as 150.000 a 200.000 pessoas presentes, famílias inteiras, inúmeras crianças. A soma dos mortos dessa incrível provocação foi de 30 a 40 pessoas, muitas delas por asfixia.
Na noite daquele domingo, os bispos presentes e outras pessoas se reuniram para pôr em comum o que tinham visto e tudo o que se sabia sobre o episódio durante o funeral. O resultado dessa análise detalhada foi escrito e assinado pelos participantes. Assim, recusou-se a versão dos fatos dada pelo governo salvadorenho e indicou-se o Palácio Nacional como o lugar de onde havia sido lançada a bomba e tinha se disparado sobre a multidão.
Dom Romero, então, só pôde ser enterrado nas circunstâncias em que o povo salvadorenho vive cotidianamente: no meio das balas, do medo que se busca incutir, mas também da reafirmação da vontade de libertação e de crescimento da esperança.
Dom Romero é um mártir da opção feita pela Igreja em Medellín e Puebla. A partir da sua morte, o significado dessa opção apareceria mais claramente. Um mártir que dá testemunho do Deus vivo em meio à morte que os opressores semeiam. Mártir do nosso tempo, cristão incômodo e forte, de vida clara, humilde e serena. A sua morte, infelizmente, não é um fato isolado e nos permitirá compreender muitas outras testemunhas espalhadas neste continente de dor e de opressão, mas também de libertação e de esperança, que é a América Latina.
Sobre o sangue dos mártires, constrói-se a Igreja como comunidade que anuncia na Ressurreição a vitória final. da vida sobre a morte. Sobre o sangue dos mártires, está sendo construída no nosso subcontinente uma Igreja em meio a um povo que luta pela sua libertação.
Dom Romero descrevia assim o seu trabalho, em uma homilia: “O meu trabalho consistiu em manter a esperança do meu povo. Se há um pouco de esperança, o meu dever é alimentá-la”.
A sua vida e o seu martírio alimentam e aumentam as esperanças do povo pobre, explorado e cristão da América Latina, dão vida nova e impõem novas exigências para a Igreja ali presente.